Pedro e João olharam bem para ele e, então, Pedro disse: “Olhe para nós! ” (Atos 3.4)
Na epígrafe do livro “Ensaio sobre a cegueira”, Saramago usa a frase: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Eu tenho miopia, que é a dificuldade de ver ao longe. Quando olho à distância sem óculos, é como se tudo estivesse desfocado. Embora tenha apenas um grau no olho direito e dois no esquerdo, isso afeta todas as percepções. Não sou capaz de discernir rostos, letras e mesmo os objetos maiores parecem como quem enxerga através de uma vidraça molhada de chuva.
Não sou capaz de ver. Por isso, a solução é usar óculos. Parece uma coisa tranquila de se pensar, mas na verdade os óculos são uma grande metáfora para as intermediações que estão entre as coisas como são e as coisas como são vistas. Eu não podia entender que não enxergava direito até que coloquei os óculos e vi como a perspectiva mudou. Tive de reajustar inclusive meu cérebro para medir distâncias ao caminhar e ao esticar a mão para pegar alguma coisa. Eu achava que as coisas eram de um jeito, mas com os óculos elas se tornam mais exatamente o que são – não para o mundo todo, mas particularmente para mim.
Da mesma forma que a miopia afeta minha visão ocular, deformidades, emoções, traumas, necessidades e influências que eu recebo afetam meu modo de ver – sensorial e afetivamente – o mundo. Posso estar míope de amor, de compreensão, de empatia e nem me tocar disso! Como posso ser curada? Eu poderia hoje facilmente fazer uma cirurgia ocular, me dizem. Mas, como sou medrosa, prefiro os óculos.
Os óculos são algo fora de mim que trazem a compreensão do mundo para dentro de mim. Preciso de óculos emocionais para entender a dor da outra pessoa. Eu a vejo desfocada, não faz sentido e não posso interpretá-la. Mas com os óculos do amor, da empatia e da acolhida eu sou capaz de discernir uma dor que não é minha, sou capaz de limpar a vidraça de chuva e enxergar o que está do outro lado, sem distorções.
Preciso reconhecer, contudo, a miopia, para que possa fazer cirurgia ou usar óculos. Se digo que tudo está bem, que enxergo perfeitamente, posso colocar a culpa dos tropeções em todas as pessoas, menos em mim mesma. Isso é o que geralmente fazemos com as dores emocionais, com a falta de perdão, com os problemas relacionais, com essa mania de dividir tudo em dois que hoje nos joga da direita para a esquerda e vice-versa em todos os assuntos do momento! A culpa é da nossa miopia. A cura são os óculos adequados.
Hoje, quero ir ao único que pode abrir os olhos de quem não vê. Os olhos do corpo, sim, mas especialmente os olhos espirituais, os olhos das emoções, os olhos da alma. Não quero ser arrogante e dizer que enxergo, porque não tenho certeza de que enxergo até que o Médico diga que estou vendo exatamente como devia ver. Ele pode colocar lodo nos meus olhos, ele pode tocar minhas vistas, ele pode me mandar ir ao sacerdote… mas se ele der a ordem, verei. Ele pode colocar em mim os óculos da misericórdia e verei. Ele pode dar-me as lentes de contato do perdão, e verei. Pode ser que me venha com a lupa do arrependimento, mas é certo que verei. E se eu puder olhar nas direções que ele apontar, que eu veja. E se eu vir, que eu repare.
Como Pedro e João, na porta Formosa do templo, “olharam bem para o coxo”. Olharam para ver todas as coisas referentes a ele. E porque o tinham visto, pediram de volta: “Olha bem para nós”. Somos dois desvalidos, como você. Podemos andar, mas ainda estamos aprisionados a muitas coisas. Podemos saltar, mas ainda nos arrastamos em pecado. Mas a gente conhece o médico. Trabalhamos para ele. E no nome dele é que podemos fazer as coisas acontecerem. Vemos, porque ele vê. E porque vimos, reparamos. E porque reparamos, nos comprometemos. “Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, anda!” (Hideide Brito Torres)